terça-feira, 15 de abril de 2014

Orgulhosa de mim

“Como é que se esquece alguém que se ama? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. 
Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguém antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar. 
É preciso aceitar esta mágoa esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução.
Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado. 
O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar.”

Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'


Hoje foi um bom dia. Há meses que não sentia isto.
Voltei a sonhar com ele, a acordar terrivelmente triste e ansiosa, com vontade me fechar no quarto, debaixo das mantas mas, pela primeira vez, ignorei este estado catatónico e fui-me à vida, ás responsabilidades. Sempre que sonhava com o João ou obtinha alguma informação sobre ele, passava o dia na cama. E o emprego, perguntam vocês? Pois, eu trabalho num sitio meio isolado, somos só 5 e tapamo-nos uns aos outros. Os chefes quase nunca aparecem. Desde que o trabalho apareça feito, ninguém se preocupa. Então os meus colegas têm sido porreiros e não me delatam nas minhas inúmeras faltas nesta fase negra. Mas hoje, confessando que pensei logo em não ir trabalhar, veio-me à mente este texto do Esteves Cardoso que alguém me tinha mostrado há várias semanas atrás. Veio, do nada, como uma luz. E aceitei. Aceitei que estou mal, certamente me manterei mal por tempo indeterminado, mas a Vida é isso mesmo, ir remando para a frente e sentindo a dor, carregando-a, aninhando-a e respirando juntamente com o peso dela.
Levantei-me, doía respirar, magoava cada lembrança dele, nossa, mas vesti-me e sai. O trabalho correu bem, uma amiga visitou-me, estive 2h no ginásio e cheguei a casa leve, cansada e bem, sem vontade de pensar em ninguém, em nenhum passado. E aqui estou, às 23.49h, terminando o meu dia bem, leve e, posso dizê-lo pela primeira vez em meses, contente. “Feliz” ainda não é a minha palavra, mas será! Basta manter-me assim, grata pela Vida, aceitando esta dor, vivendo-a, respirando-a, fazendo o melhor que posso até que ela decida partir.
Que amanhã este espírito se mantenha. 

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